Google Analytics

    MINHA AUTORIA    PIMENTINHA    LIVROS    FILMES
Mostrar mensagens com a etiqueta Autoria_LMCF. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Autoria_LMCF. Mostrar todas as mensagens

20 de julho de 2025

Um, dois, três... Macaquinho do Chinês!

A tarde vinha morna, quase triste, daquelas em que até os cortinados parecem suspirar. Os ombros de Larita traziam o peso de reuniões vazias e filas sem destino. Com um suspiro, deixou cair a mala no chão.

— Hoje... vamos jogar.

Loira, cadela de alma dourada, cheirando a sol e chão quente, ergueu-se num salto que sacudiu almofadas, memórias e pó. Ginger, o gato laranja, nem pestanejou. Cookie, loiro e teatral, desapareceu como um ator sem fala.

— Um... dois... três... macaquinho do chinês!
Virou-se. Loira estacada, mas o chocalho da coleira ainda sussurrava no ar.
— Estás fora... — sorriu Larita, como quem reaprende a brincar.

O soalho rangia, os móveis respiravam. A luz tingia o chão de laranja derretida. O ar sabia a almofadas gastas e tardes cheias de vago.

Nova ronda.
— Um... dois... três... macaquinho do chinês!
Cookie avançava como sombra em missão. Ginger desaparecera do tapete.

Do relógio, um tilintar seco. Lá fora, uma buzina esquecida.

— Um... dois... três... macaquinho do chi—

Miau.

Um som. Breve. Quase irreal.
Larita ficou imóvel. Teria ouvido mesmo?

Virou-se devagar. Lá estava ele.
Ginger, em cima do encosto do sofá, com uma pata no seu ombro. Olhos calmos. Bigodes firmes. Corpo leve como quem reina sem ruído.

O tempo parou. Depois explodiu em gargalhadas.

Loira, emocionada, correu e enroscou-se contra Larita, quente e viva como abraço esquecido. Cookie saltava, vitoriosa por associação.

E então — sem alarde — a tristeza, aquela senhora silenciosa de fim de tarde, levantou-se do canto e saiu pela porta da varanda.

"Há dias em que perder para um gato é a vitória mais elegante que se pode ter."

1 de julho de 2025

O mal das coisas boas


No coração da cidade antiga, onde as pedras sussurram histórias esquecidas, morava um homem chamado Elias. Conhecido pela sua bondade desmedida, oferecia tudo o que tinha — comida, abrigo, até o próprio tempo — aos que batiam à sua porta. A casa, uma relíquia coberta de heras, era um farol para os perdidos, um oásis de luz num mundo cansado.

Mas a bondade, pensava Elias, tinha um preço. Cada acto de generosidade drenava algo invisível, uma ausência que crescia em silêncio dentro dele. As tábuas antigas rangeram, num suspiro que parecia conter uma paciência sombria. As heras mexiam-se, deslizando pelas paredes como dedos ávidos, à espera que Elias cedesse ao que se abrira na sua alma.

Numa noite enluarada, um estranho apareceu, com olhos de abismo e voz que parecia vir de outro tempo. Entregou-lhe um presente — uma caixa pequena, ornada com símbolos que dançavam nas sombras. Na caixa, a inscrição borrada lia-se com esforço: “Só abre, quando já não fores inteiro.” “O Espelho do Vazio”, murmurou o estranho antes de desaparecer no nevoeiro.

Dias passaram, e o silêncio sem fim apertava as costelas de Elias, consumindo-lhe o sorriso. A casa, antes cheia de risos e aromas de pão fresco, tornou-se um mausoléu de memórias apagadas. Por fim, numa mistura de medo e desespero, afastou a caixa com mãos trémulas, como se repelisse um veneno. Uma voz distante, uma lembrança tênue da infância, sussurrou-lhe: “Não faças isto.” Mas a ausência dentro dele era uma maré que não cedia. Tremendo, Elias cedeu e abriu a caixa.

Dentro, um espelho negro não se limitava a mostrar rostos; ao fixar os olhos na sua superfície, sentiu uma brisa fria roubar-lhe a última centelha de calor, como se o próprio reflexo sugasse a sua alma. Não viu o seu rosto, mas as almas daqueles a quem dera algo, todos a olhar, vazios e famintos. Cada gesto bom não tinha curado, apenas roubado pedaços do seu próprio ser para alimentar espectros invisíveis.

O terror não vinha de monstros externos, mas daquilo que ele próprio criara: um cemitério de boas intenções. A sua bondade, como uma erva venenosa, crescera até sufocá-lo, deixando-o prisioneiro daquilo que mais amava.

Naquela noite, Elias desapareceu. A casa, agora calada, aguardava a próxima alma que acreditasse no mal das coisas boas, onde a luz era só a sombra do sacrifício eterno. E do espelho, a sombra de Elias sorria. Como sempre. Para servir.

26 de junho de 2025

O Sopro da Vida

Às vezes, não há mesmo um aviso.
As cortinas do tempo se abrem, nuas,
sem música, sem prólogo,
só o silêncio e as mãos cruas.

Em poucos segundos, tudo cai.
O chão que parecia tão seguro se esvai em névoa.

E o que era o alicerce torna-se apenas rastro, poeira.

Vivemos na ilusão do comando,
traçando um plano como um cartógrafo,
crendo que a vida é linear e previsível,
mas é maré e vento errático.

Pensamos demais. A mente pesa.
O que virá? O que foi? E se fosse...?
Levamos as pedras nos bolsos
e esquecemos o instante que nos trouxe.

Pensa menos e sinta mais.
Sinta o calor do sol sobre a face,
o silêncio a dançar entre os sentidos,
o riso sem razão, leve e fugaz,
o arrepio dos tempos já partidos.

A vida é curta e bela,
E se a olharmos bem, nem é breve é um sopro.

Suspiro entre dois vazios.
Aproveitar não é correr, é ser.
É colher figos antes que estejam frios.

Há beleza no estar, simplesmente,
viver com atenção, em alma presente,
amar sem rede, sem garantias,
sorrir sem causa, eternamente ausente.

Não há promessa firme do amanhã.
Só este agora, feito sem demora.
Tão frágil como a pele da maçã,
e tão eterno quanto o sopro do agora.

15 de junho de 2025

A Teia


A primeira aranha apareceu na manhã em que o velho modem piscou pela última vez. Clara vivia sozinha num rés-do-chão húmido, paredes forradas de livros e silêncios, onde o ruído do mundo chegava filtrado por camadas de poeira e memória. Quando perdeu a ligação à internet, não ligou. Era um alívio. Um silêncio novo.

Na semana seguinte, teias surgiram nos cantos dos quartos. Mas não eram teias comuns. Estendiam-se com uma simetria quase matemática, fios prateados que vibravam mesmo sem vento. As aranhas, finas como agulhas, tinham olhos demais. Clara tentava limpá-las. No dia seguinte, estavam de volta. Maiores. Mais densas.

Descobriu que os livros estavam colados. Quando forçou um, as páginas estavam preenchidas por símbolos bordados em seda  fórmulas, fragmentos de código, palavras que nunca aprendera. Conectada. Permanece. Ouvida.

Na véspera do equinócio, Clara tentou religar o modem. As luzes piscaram uma última vez. Depois, só o zumbido. Um calor estranho percorreu a casa. Os espelhos cobriram-se. Os livros calaram-se. Só restavam as teias. E as vozes.

Nessa noite, acordou com o som do fio eléctrico a cantar. As teias brilhavam como circuitos vivos. No centro da sala, uma aranha do tamanho de um cão. Tinha a boca de um velho amigo morto. Sorria.

— Ligámo-nos, Clara. És nó. És ponte.

Ela caiu de joelhos. A seda envolveu-lhe os pulsos. Era morna. Não doía. Era como regressar. A casa dissolveu-se em fragmentos de luz.

No dia seguinte, os vizinhos comentaram o desaparecimento. A polícia entrou. Só encontraram uma divisão vazia e um monitor antigo, onde corria um código em tempo real. No topo, uma palavra única: Qh’raNet.

— O que é isso? — murmurou um agente.

— Um nome, talvez — respondeu outro. — Ou um idioma que ainda não foi sonhado.

A ligação nunca caiu. E nas noites mais silenciosas, se escutares com atenção… ouvem-se cliques. Como patas minúsculas a rastejar pela rede.

11 de junho de 2025

E a sorte?? Paira no meu ar?


Sim, a sorte paira no teu ar esta semana, mas não como prémio. Como resposta.

Ela não virá aos gritos, nem com clarins celestes.
Virá no instante em que escolheres com verdade.
No momento em que recusares o que brilha, mas não vibra.
Na hora em que fores fiel à tua cadência, lenta, antiga, certeira.

A sorte está em ti quando confias no que sabes há muito:
que o código limpo é como um poema bem medido,
que uma palavra certa vale mais que um milhão de cliques,
que o tempo, esse velho artífice, está do teu lado quando não te vendes à pressa.

Se precisares de um sinal, ele virá entre quinta e sábado.
Não será óbvio, mas será exato. Um encontro, uma frase, um erro que afinal é chave.
Repara bem.

Não desates logo a interpretá-lo, vive-o.

Se te perguntam se tens sorte, podes sorrir devagar e responder:
“Tenho. Mas é da que se cultiva com silêncio e escolha certa.”

E sim, o ar está cheio dela.
Só tens de respirar com intenção.

3 de junho de 2025

Obrigada a mim

 O sol nascia no quarto creme. A luz filtrava-se pelas persianas, desenhando sombras no chão.

O ar cheirava a desinfetante e silêncio.

O lençol, áspero contra a pele marcada, colava-se à carne como se quisesse lembrar onde doía.

E eu, presa entre tubos e cicatrizes frescas, olhava o tecto como quem olha um céu escuro.

O silêncio era denso.

Só quebrado pelo bip das máquinas, esse compasso metálico da sobrevivência. Ali, o tempo não era tempo. Era espera. Era dor com nome e hora marcada. Não me lembro da última vez que respirei sem dor.

O meu corpo era um campo de batalha. A pele, trincheira. Os músculos, soldados exaustos. E as cicatrizes… As cicatrizes eram fronteiras. Terreno conquistado.

Cada linha na carne contava o avanço de uma ofensiva vencida a custo. Uma emboscada superada. Um regresso possível.

 Lutei. Sozinha. Mas não como nos filmes.

Sem música. Sem frases de efeito. Lutei em silêncio. Com o maxilar cerrado. Com a raiva sussurrada para dentro.

Com os olhos abertos no escuro, a negociar com a dor: só mais um dia. Depois logo se vê.

Lutei quando comia sem vontade. Quando forcei o corpo a levantar-se. Quando, na casa de banho do hospital, limpei o sangue e murmurei: não acabou.

E os dias vieram. Cansados, repetidos, sem glamour. Mas vieram. E eu permaneci.

No espelho, agora, vejo outra. Os olhos, mais fundos. A pele, mais dura. Mas há uma força que nasce do que perdi.

Porque perdi. Perdi leveza. Perdi inocência. Perdi o luxo de viver sem pensar no corpo.

Mas ganhei qualquer coisa mais funda. Ganhei atenção. Ganhei presença. Ganhei o peso exacto do instante, a densidade plena de estar viva, sem distração.

E isso não se ensina. Aprende-se com o que arde.

Não fujo das cicatrizes. Toco-as. São o mapa da minha resistência. As linhas que desenham quem me tornei.

Hoje agradeço. Não aos deuses. Nem ao destino. A mim.

Por não ter desistido quando tudo me empurrava para o fim. Por ter ficado, mesmo a tremer. Por ter dito sim ao futuro, sem promessas, sem garantias. Por me ter resgatado.

Não preciso de medalhas. Nem de reconhecimento.

Apenas isto, passo a mão devagar sobre a pele marcada, não como quem procura o que foi, mas como quem reconhece quem sou.

Fecho os olhos. Suspiro. E sorrio, com tudo o que ficou.

Obrigada, a mim. Por ter morrido um pouco. Para poder viver inteira.

1 de junho de 2025

A Última Face


No dia em que Clara se esqueceu do rosto, o espelho da entrada estilhaçou-se sozinho.

O sol nascente iluminava a casa antiga, revelando o pó a dançar no ar como espectros silenciosos. Ela desceu as escadas lentamente, os pés descalços tocando a madeira fria, mas não sentia nada. Estendeu a mão para o espelho, onde costumava ver o sorriso treinado, a simetria artificial que tanto praticara. Agora, só vidro partido como se o reflexo tivesse tentado fugir.

Na vila, evitavam-na. Sussurravam quando passava, como se o silêncio tivesse peso e forma. O padre benzia-se três vezes ao vê-la. As crianças choravam. E Clara, que outrora vivera do olhar dos outros, vestia lenços escuros e mantinha a cabeça baixa, tentando prender o que quer que restasse de si.

Certa noite, guiada por um pressentimento húmido e denso, desceu à cave. As paredes transpiravam memória. No fundo, uma caixa de madeira — não se lembrava de a ter guardado ali. Dentro, máscaras de vidro, todas com feições diferentes. Reconheceu uma: os olhos largos, a boca que sorria só com um lado. A sua, antes do esquecimento. Ergueu-a com mãos trémulas.

O vidro estava quente. E por dentro algo movia-se. Reflexos sem dono, memórias a flutuar como peixes em formol.

Com dedos trémulos, Clara percorreu a linha da boca da máscara. Um gesto antigo, íntimo. Talvez uma lembrança. Depois, colocou-a no rosto.

O vidro respirou contra a pele, e ela deixou de ser fronteira.

Primeiro, um suspiro. Depois, gritos. A máscara apertava-lhe a carne como um crânio a crescer por dentro. As feições antigas tornaram-se cárcere. Lembrou-se, então, não do que era, mas do que fizera. De como moldara rostos alheios até se esquecer do seu. Cirurgiã de vaidades, artesã de espelhos falsos.

A casa começou a ranger. O ar tornava-se espesso. No espelho da entrada, agora recomposto, surgia um desfile de faces a chorarem sangue pacientes? Vítimas?

Quando Clara tentou arrancar a máscara, os dedos estavam fundidos ao vidro. A fronteira era já memória.

No dia seguinte ou anos depois, a casa estava vazia. No espelho intacto, pendia uma nova máscara: olhos abertos demais, boca num silêncio que gritava por dentro. Dentro dela, flutuavam imagens. A infância de alguém. Um parto. Uma lâmina. O reflexo recusava-se a devolver uma só verdade.

Esperava quem ousasse olhar.

29 de maio de 2025

Descalçar o Pensamento

No alpendre gasto de madeira antiga,
ela pousou os sapatos sem palavra.
O chão sentiu o peso do abandono
e devolveu-lhe o frio da memória.

A casa ouviu o gesto sem ruído,
como quem quebra um pacto sem remorso.
Os quadros nas paredes tremularam
com a leveza das coisas que se foram.

Caminhou nua do tornozelo à mente,
deixando para trás o ruído das ideias.
No coração cresceu uma clareira
onde os sentidos ardiam sem juízo.

Na cozinha, o relógio estava mudo.
No seu lugar, batia um outro tempo.
Os pensamentos, descalços, tropeçavam
nos cantos mais antigos da infância.

Ali, o pai chamava da figueira.
Ali, a mãe bordava no fim do dia.
E o mundo era um lugar sem argumento,
feito apenas de cheiros, toques e gestos.

Sentou-se junto à luz, perto da porta.
Não quis partir, mas também não ficou.
No rosto havia a sombra do que viu,
nos pés, o peso leve do que soube.

E quando a tarde cedeu à promessa,
ergueu-se com a coragem dos simples.
Calçou o pensamento com silêncio
e caminhou, inteira, sem destino.

12 de maio de 2025

O que ninguém sabe


O poço no fundo do quintal nunca secava, mesmo nos verões em que os rios sumiam sob a poeira. A avó dizia que era abençoado. O pai murmurava o contrário, mas só quando achava que ninguém ouvia.

Numa noite de Agosto, quando o calor roía os ossos e a electricidade faltava, ela acordou com um som húmido, arrastado, vindo lá de baixo. Foi até à janela. O balde subia devagar, como se soubesse o caminho de cor, puxado por uma força que não vinha da terra. No topo, repousava algo que não devia ter nome — um amontoado de carne escura, pulsante, como um coração lembrado só pelos mortos.

De dentro, escapava um sussurro baixo, molhado, como se o objecto respirasse.

De manhã, tudo parecia intacto. A mãe varria o alpendre com indiferença. O cão, encolhido sob a mesa, rosnava para o poço.

Durante dias, observou em silêncio. Sempre à mesma hora, três e onze da madrugada, o balde descia e subia. E cada vez trazia mais: dentes soltos, cabelos embaraçados, uma mão de criança a mexer os dedos como algas na corrente.

Na sétima noite, desceu descalça, guiada pela lua cheia e pelo cheiro metálico do medo. Amarrou a corda à cintura, murmurou um adeus às estrelas e deixou-se engolir.

Ao romper da corda, ouviu-se um estalido surdo como o osso de um pescoço a ceder.

Lá dentro, não havia água. Só pedra húmida e carne — carne por toda a parte, a respirar. Vultos espreitavam nas paredes vivas, olhos que brilhavam com fome antiga. E vozes. Milhares delas. Sussurravam segredos em línguas que não pertenciam ao tempo dos homens.

Mariana, Mariana... o que ninguém sabe é que nunca saíste de cá.

Acordou no alpendre. Suja de lodo. Os dedos formigavam como se pertencessem a outro. Ao levantar-se, o pé esquerdo demorou um segundo a obedecer. O espelho recusava o reflexo.

O poço estava selado. A mãe sorria. O pai acenava da varanda.

Às três e onze, o coração voltava a bater — impaciente — fora do peito.

Alguns regressam. Mas ninguém sabe o que trouxeram.

E o que subiu… já não era ela.

11 de maio de 2025

Raízes Invisíveis

A primeira coisa que um bebé faz, com consciência, é entregar-se.
Ao peito da mãe, ao calor que a envolve, ao leite que acalma.
À suavidade da tua voz, que abraça os medos.
É em ti que repousa o primeiro sorriso, o primeiro suspiro tranquilo.


Lembro-me, mãe, da tua mão firme sobre a minha,
quando o medo me envolvia como uma noite sem fim.
Lembro-me do teu olhar que dizia "estás segura",
quando o mundo parecia abismo e a dúvida se insinuava.


Os perigos disfarçados, os obstáculos e sombras.
As experiências, boas ou más, ensinam-nos a hesitar.
De ti, mãe, comecei a duvidar, não por tua falta,
mas por que o mundo me tornava vulnerável à dor.

 

Quem perde a confiança, vive no escuro.
O temor cresce, como erva daninha.
Aos poucos, silenciosa, entranha-se no peito,
tomando forma, entupindo os sentidos.


Lembrei-me de ti, nos silêncios que partilhávamos,
no toque que diz mais que as palavras.
Ao voltar a abrir-me para ti e para o mundo,
aprendi a curar as feridas com o mesmo amor que me ofereceste.


Tu, mãe, nunca me deixaste.
Mesmo quando os medos cresciam como raízes profundas.
Foi em ti que aprendi que a confiança não morre, só se transforma.

Hoje, quero crescer dentro de mim, descobrir as correntes invisíveis.


No teu abraço, encontrei a coragem, para continuar.
E, mesmo em cada passo livre, a tua presença ecoa em mim,
como a raiz que me sustenta, como o farol que nunca se apaga.


O teu amor, como uma onda silenciosa, ainda me embala.
E, mãe, tu és o fio invisível, que me liga ao mundo.
Como sempre foste. E sempre será assim.

2 de maio de 2025

A terra que respira


A terra cede sob os pés, branda, aberta,

como se nunca tivesse sido pisada.

O vento estende as mãos invisíveis,

puxa o olhar para o horizonte rasgado,

onde nada existe ainda, mas tudo espera.

Os passos surgem antes do corpo,

desenhando um traço onde não havia forma.

Cada pedra que rola ao lado

é um grão de tempo deslocado,

um aviso de que ir é também deixar.

Os dedos tocam os troncos brutos,

as cicatrizes vivas das árvores antigas,

onde a seiva ainda corre sob a casca dura.

Há uma voz sem som na madeira,

Que sussurra o nome de quem veio antes.

O céu pesa sobre os ombros,

não como um fardo, mas como um chamado.

A poeira sobe dos passos e dissolve-se,

sem pressa, sem regresso, sem promessa.

Cada gesto abre um corte no silêncio,

cada decisão finca raízes na incerteza.

Mas a marcha não se detém,

porque a ausência de caminho

é apenas uma espera por pegadas.

No fim, quando o olhar se volta,

não há vazio, nem dúvidas, nem sombras.

Só a linha esculpida na terra

e o eco dos passos que já não hesitam.